14 novembro 2010

Crônica - Fernando Sabino


Excelente crônica escrita por Fernando Sabino, mas quem é o gato afinal? O psicanalista, tão atencioso em sua análise ou o cliente que lhe conta seu sonho? Entre um e outro, o gato firma-se como símbolo da liberdade incondicional de sonhar।
O gato sou eu

- Aí então, eu sonhei que tinha acordado। Mas continuei dormindo.- Continuou dormindo.- Continuei dormindo e sonhando. Sonhei que estava acordado na cama, e ao lado, sentado na cadeira, tinha um gato me olhando.- Que espécie de gato?- Não sei. Um gato. Não entendo de gatos. Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato.- A que você associa essa imagem?- Não era uma imagem: era um gato.- Estou dizendo a imagem do seu sonho: essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção do seu subconsciente. A que você associa ela?- Associo a um gato.- Eu sei: aparentemente se trata de um gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.- Essa não, doutor. A ser alguém, neste caso o gato sou eu.- Você está enganado. E o mais curioso é que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se sonha não passa de uma projeção do eu.- Uma projeção do senhor?- Não: uma projeção do eu. O eu, no caso, é você.- Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e estamos conversados.- Eu sei: eu sou eu, você é você. Nem eu iria pôr em dúvida uma coisa dessas, mais do que evidente. Não é isso que eu estou dizendo. Quando falo no eu, não estou falando em mim, por favor, entenda.- Em quem o senhor está falando?- Estou falando na individualidade do ser, que se projeta em símbolos oníricos. Dos quais o gato do seu sonho é um perfeito exemplo. E o papel que você atribui ao gato, de fiscalizá-lo o tempo todo, sem tirar os olhos de você, é o mesmo que atribui a mim. Por isso é que eu digo que o gato sou eu.- Absolutamente. O senhor vai me desculpar, doutor, mas o gato sou eu, e disto não abro mão.- Vamos analisar essa sua resistência em admitir que eu seja o gato.- Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou seu?- Seu. Quanto a isto, não há a menor dúvida.- Pois então? Sendo assim, não há também a menor dúvida de que o gato sou eu, não é mesmo?- Aí é que você se engana. O gato é você, na sua opinião. E sua opinião é suspeita, porque formulada pelo consciente. Ao passo que, no subconsciente, o gato é uma representação do que significo para você. Portanto, insisto em dizer: o gato sou eu.- E eu insisto em dizer: não é.- Sou.- Não é. O senhor por favor saia do meu gato, que senão eu não volto mais aqui.- Observe como inconscientemente você está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem…- Que é que há, doutor? Está me chamando de chantagista?- É um modo de dizer. Não vai nisso nenhuma ofensa. Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida, mesmo num sonho, na forma de um gato.- Pois se o gato sou eu! Daqui a pouco o senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.- Olhe aí, não estou dizendo? Olhe a sua reação: isso é a sua maneira de me agredir. Não posso cobrar consulta dentro do seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.- Já disse que o gato sou eu!- Sou eu!- Ponha-se para fora do meu gato!- Ponha-se para fora daqui!- Sou eu!- Eu!- Eu! Eu!- Eu! Eu! Eu!

Fique por dentro:

Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte, 12 de outubro de 1923Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2004) foi um escritor e jornalista brasileiro.Durante a adolescência, foi locutor de programa de rádio e começou a colaborar regularmente com artigos, crônicas e contos em revistas da cidade, conquistando prêmios em concursos.No início da década de 1940, começou a cursar a Faculdade de Direito e ingressou no jornalismo como redator da Folha de Minas. Seu primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais, foi publicado em 1941, no Rio de Janeiro.
Tornou-se colaborador regular do jornal Correio da Manhã, onde conheceu Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1944. Depois de se formar em Direito na Faculdade Federal do Rio de Janeiro em 1946, viajou com Vinicius de Moraes aos Estados Unidos da América, onde morou por dois anos em Nova Iorque.
O encontro marcado, uma de suas obras mais conhecidas, foi lançada em 1956, ganhando edições até no exterior, além de ser adaptada para o teatro. Sabino decidiu, então (1957), viver exclusivamente como escritor e jornalista. Iniciou uma produção diária de crônicas para o Jornal do Brasil, escrevendo mensalmente também para a revista Senhor.
Em 1960, Fernando Sabino publicou o livro O homem nu, pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta. Publicou, em 1962, A mulher do vizinho, que recebeu o Prêmio Cinaglia do Pen Club do Brasil.
Em 1966, fez a cobertura da Copa do Mundo de Futebol para o Jornal do Brasil. Fundou, em 1967, em conjunto com Rubem Braga, a Editora Sabiá, onde publicou livros de Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Clarice Lispector, entre outros.
Publicou o romance O grande mentecapto em 1979, iniciado mais de trinta anos antes. A obra, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, e acabaria sendo adaptada para o cinema, com direção de Oswaldo Caldeira, em 1989, e também para o teatro. Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.
Faleceu em sua casa em Ipanema (zona sul no Rio de Janeiro), vítima de câncer no fígado, às vésperas de seu 81º aniversário.

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